quarta-feira, 7 de abril de 2010

Carta pra ninguém [III]


Amanhã deveria ser um dia comum, cinza, chuvoso,
como tem sido os últimos dias dela, inclusive os de Sol.
Banal, rotineiro, se não fosse o problema de passar naquela rua...
Sim, aquela da tinta, lembra-se?
Ela não entende por que é obrigada a voltar aos mesmos lugares;
Martírio! Tudo é ele o tempo todo: infrações, multas, motores...
Ter de encarar isso é barra; sente-se fragilizada diante das coincidências e,
impotente, por não poder evitá-las; simplesmente tem de continuar
vivendo...passando...enfrentando a fera, sua dor e seus fantasmas.
Então se programa: acordar cedo, escovar dentes, pentear macaco;
durante o processo a cabeça não pára: não pensar não pensar não pensar... será possível?
Se quanto mais se esforça mais se lembra?!...loucura! Sua cabeça é uma usina nuclear no amanhã que,
de alguma forma, será e não será. Ela passará por ali, inevitavelmente, e já sente de antemão o que irá sentir:
um frio louco por dentro; aquele vazio latejando o silêncio do celular.
Dorme pouco...seu sono é nervoso; fragmentado...sem ele tudo nela é oco; mas, mesmo assim, amanhece
e não dá outra: maktub conforme "ontem". Os sintomas de frio, ausência, saudade e dor eram os mesmos;
(talvez mais acentuados pela ansiedade...)
Entretanto não vacilou. Resgatou na zona abissal do seu íntimo os últimos resquícios de dignidade,
jogou "agua na cara" e foi dar sua veia a uma estranha.
Sair no escuro... logo ela que acha esquisito dizer bom dia quando ainda tem lua... Por sorte,
todos bichos papões que conhece a habitam; está acostumada. Aprendeu a lidar com eles utilizando
estratégia maquiavélica, tipo: melhor ter os inimigos por perto... Desta forma, acreditando, vestiu coragem e saiu:-
Liberdade, Sé, Pátio do Colégio...ai que bom; chegou "bem" na Boa vista, mesmo tendo
ultrapassado 2 sinais vermelhos; quanto mais passava, maiores alegrias, também maiores mágoas.
Com certeza, o carro se auto conduziu , porque ela que não queria pensar, olhar,
sentir e planejou escapar ilesa, se pegou desesperada a buscar nas ruas, nas casas,
nos ônibus e até nas primas, alguma lembrança boa e eram todas tão boas que embarcou na viagem;
Porém, quando você se encontra assim, sob efeito tóxico da paixão, costuma entrar naquele surto psicótico (psicoamorótico)
e, portanto, ela o via em toda parte; mas pirar, pirou mesmo na Praça da Sé. Ah...a Praça da Sé!!!...
Embora fosse dia, era noite; tão noite quanto infinitas 19 horas...tão clara quanto seus faróis. Era lá que ela carregava
seu olhar no dele...E aquele semáforo da curvinha, então?... Fechava sempre na hora certa para se beijarem.
Porra, como ela gostava destes momentos! Mas hoje, explicavelmente, ele ficou vermelho e ela sozinha.
Sem seu amor, sua boca, sem nenhum de seus bichinhos...
Foi aí que se deu conta: Na real, quem estava no vermelho, há tempos, não era o semáforo...
Caiu do sonho. Cabisbaixa, com o rabo entre as pernas, acordou pra vida, mas antes, se prometeu:
Com ela, ele não vai mais... Da próxima vez, sai de casa sem cabeça.


Lúcia Gönczy

3 comentários:

  1. Parabén pelo texto, Lúcia! Um susto na vida rotineira. Adorei!!!

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  2. Sim
    É muito bom. Ela em sua carruagem e tantos cavalos de emoção. Somos todos o que uns poucos contam.

    Beijo Lu

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  3. Lúcia,


    A paixão: círculo vermelho-incandescente.





    Belo texto!





    Beijo.

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